A pesquisa no direito contemporâneo
1: Universidade, ciência e retórica: a permanência do trivium
As universidades contemporâneas são instituições que desempenham funções muito diferentes. Desde o início do século XIX, elas concentram boa parte da produção científica, realizando pesquisas empíricas que contribuem para o avanço do conhecimento científico nas mais diversas áreas. Porém, não devemos pensar nas universidades apenas como o lugar da ciência, pois até hoje elas dedicam boa parte dos seus esforços para a realização de uma outra atividade: a formação técnica de profissionais especializados. De fato, o objetivo original das universidades europeias, criadas pouco antes do ano 1200, foi proporcionar formação adequada para as profissionais ditas liberais, especialmente juristas e médicos.
Antes da era das universidades, as escolas europeias eram instituições religiosas voltadas à formação de clérigos (Sheffler 2008) por meio do ensino das artes liberais, ou seja, dos conhecimentos que deveriam ser dominados por todos os homens livres, para que pudessem exercer adequadamente suas funções na cidade.
A base desse sistema de conhecimentos era classicamente conhecido como o trivium, nome dado ao domínio adequado da linguagem (Gramatica), da capacidade argumentativa (Dialética) e da elaboração de discursos persuasivos (Retórica). No início da idade média, esse repertório de saberes foi complementado pelo quadrivium, que envolvia quatro disciplinas ligadas à matemática: a Geometria, a Aritmética, da Astronomia e a Harmonia musical.
Embora a relevância das disciplinas do trivium dispense explicações, a composição do quadrivium somente pode ser compreendida a partir da cosmovisão que o inspira. Na base do quadrivium, está a concepção de que existe uma ordem no mundo terreno e celeste (motivo pelo qual Geometria e Astronomia vêm lado a lado), expressa em proporções (como na harmonia musical) que precisam ser compreendidas em termos matemáticos (aritméticos e geométricos). O conhecimento dessa ordem superior e imutável não exigia o desenvolvimento de habilidades de pesquisa individual, pois essa ordem já estava devidamente descrita em textos dotados de autoridade: assim, a educação era voltada a capacitar os estudantes a ler e interpretar um certo corpo de textos canônicos.
Um dos livros que contribuiu para cristalizar essa conformação das sete artes liberais foi um curioso texto escrito ao final do Império Romano, em que Martianus Capella narrou As núpcias entre Filologia e Mercúrio, festa na qual cada uma das sete artes liberais faz um discurso, descrevendo os conhecimentos que elas encerram. Nesse texto, as ausências falam tanto como as presenças: a Medicina e a Arquitetura haviam se preparado para falar na festa, mas sua fala foi tolhida porque suas habilidades estão ligadas a assuntos mundanos (Capella, 1971). A importância deste livro ao longo da Idade Média indica que o que se esperava dos homens cultos (especialmente dos clérigos) não era um conhecimento utilitário, mas o conhecimento da ordem perene das coisas, expressado nas artes liberais. Já os saberes vocacionais, ligados às ocupações que as pessoas poderiam desempenhar na sociedade, eram reconhecidos como importantes, mas não eram suficientemente dignos para ocuparem a formação cultural das elites.
A criação das primeiras universidades representou um passo relevante para ruptura desse modelo de escolas voltadas à formação do clero, por meio da criação de escolas independentes, autônomas tanto com relação à igreja como em relação aos governos, capazes de propiciar uma educação que aliasse o devido conhecimento das artes liberais com a formação profissional em saberes práticos.
A fundação da Universidade de Bolonha, em 1088, constituiu um marco histórico porque criou uma nova forma de organizar o ensino a partir dessa associação entre mestres especializados e alunos interessados em uma educação superior, com o objetivo de realizar estudos acerca do Digesto. Os estudantes que pretendiam estudar com esses professores pagavam uma quantia, que inicialmente não era entendida como uma contraprestação, mas como uma doação, mas que pouco tempo depois foi formalmente reconhecida como uma remuneração efetiva para os docentes.
Essas novas instituições foram chamadas de universidades, mas isso não decorreu de pretensões universais do conhecimento medieval nem de uma aspiração universalista dessas novas escolas. Esse nome se deve ao fato de que a palavra latina para uma pessoa jurídica formada por pessoas era universitas personarum, e as universidades foram constituídas justamente como uma espécie de sociedade: a universitas magistrorum et scholarium, ou seja, a sociedade formada pela associação entre mestres e estudantes, com o objetivo comum de estudar uma determinada disciplina.
As universidades, portanto, não nasceram como um local de ciência e de pesquisa, mas como instituições voltadas a promover a formação profissional especializada de jovens juristas, o que envolvia a realização de estudos avançados nas artes liberais, mas também envolvia o estudo de matérias práticas. Essas novas escolas não se apresentavam como local de produção do conhecimento, mas de reprodução do saber, a partir da interpretação de textos clássicos cuja autoridade era reconhecida. E cabe ressaltar que a formação dos juristas consistia basicamente na compreensão dos textos direito romano a partir do pano de fundo das habilidades retóricas de sofisticados cultores do trivium.
Um exemplo desse modelo foi a Universidade de Coimbra, responsável por educar os juristas brasileiros ao longo do domínio português. Ela foi fundada em 1290, inicialmente com quatro faculdades: Artes (incluindo filosofia), Direito Canônico (Cânones), Direito Civil (Leis) e Medicina. Por volta de 1380, a Universidade de Coimbra passou a incluir também uma faculdade de teologia, matéria que foi inicialmente reservada às instituições religiosas. Essa estrutura perdurou por 400 anos, até que, em 1772, as influências iluministas da administração pombalina promoveram uma reforma na universidade portuguesa, que tornou autônoma a Faculdade de Matemática e instituiu uma Faculdade de Filosofia Natural, responsável pelo ensino das ciências. Foi somente neste momento que a universidade portuguesa passou a incluir um laboratório químico e um gabinete de física experimental.
A introdução das abordagens científicas refletiu um movimento mais amplo de valorização da ciência, que posteriormente gerou o conceito de universidade de pesquisa(research university): uma instituição que não é voltada unicamente ao ensino, mas que tem como uma de suas funções primordiais a produção de conhecimento científico.
Ocorre que essa introdução das ciências empíricas nas universidades, movimento que se consolidou ao longo do século XIX, significava mais uma agregação de novas disciplinas do que uma alteração substancial nas faculdades estabelecidas. As faculdades de direito continuavam sendo um espaço de formação profissional, voltado especialmente a educar homens capazes de integrar a burocracia governamental.
Não deve causar espanto que o objetivo manifesto da criação dos cursos jurídicos no Brasil, no início do século XIX, tenha sido a formação de funcionários públicos de elite. O objetivo da educação jurídica não era o de conferir uma formação científica aos juristas, não era o de capacitá-los para a pesquisa, mas de educá-los pela tradição do trivium, oferecendo uma cultura suficiente para a formação de uma elite política capaz de realizar o projeto de criação de um Estado independente (Apostolova 2017).
Esse modo de formar os juristas mudou pouco, até os dias de hoje. Os juristas continuam sendo formados como técnicos que dominam perfeitamente o registro culto da língua portuguesa (gramática) e que utilizam esses conhecimentos com vista a produzir discursos persuasivos (retórica), utilizando formas argumentativas (dialética) adaptadas ao seu auditório. Embora os cursos de direito sejam concentrados no ensino das leis, o conhecimento acerca da legislação e da jurisprudência é instrumental: as decisões judiciais e os diplomas normativos são conhecidos para que se possa, com base neles, construir discursos que sustentem retoricamente as teses defendidas pelo jurista.
O centro de gravidade das atividades jurídicas continua sendo a retórica, tal como no momento em que as universidades foram criadas. Todavia, os tipos de argumentos relevantes para a dogmática jurídica se modificaram bastante ao longo desses mais de 800 anos de ensino jurídico nas universidades. Inicialmente, tratava-se de estudar o direito romano. Em outros momentos, o estudo da legislação ganhou predominância. Atualmente, os dispositivos constitucionais se tornaram um objeto especial de análise.
Nesse contexto, era de se esperar que a academia jurídica continuasse sendo, ao longo dos séculos, um local mais voltado ao ensino do que à pesquisa. Mesmo que os professores sempre tenham sido estudiosos, os seus estudos não eram tipicamente pesquisas voltadas a fornecer uma compreensão mais adequada dos fenômenos jurídicos, não era o de produzir uma ciência social, nos moldes da sociologia, da antropologia ou da história.
Tanto os bacharelados em ciências exatas (como a Física e a Química) como em ciências humanas (como Sociologia, Ciência Política e História) têm por vocação formar profissionais capacitados para o exercício da pesquisa, ou seja, da realização de investigações empíricas voltadas a expandir o conhecimento científico acerca de um determinado objeto.
Porém, nas chamadas Ciências Sociais Aplicadas, como Direito, Administração e Economia, áreas em que os bacharelados costumam ter uma abordagem mais profissionalizante que científica. E isso não significa ter uma formação melhornem pior, pois os pesquisadores não exercem uma atividade mais difícil nem mais nobre nem mais criativa que a dos técnicos. De fato, os pesquisadores também são técnicos, com a peculiaridade de que dominam habilidades voltadas à realização de pesquisas científicas, produzindo novos conhecimentos.
Já os juristas tipicamente se voltaram a produzir os discursos dogmáticos que marcam um campo no qual o objeto de estudo não é um objeto empírico (a sociedade, as relações sociais, os comportamentos dos juízes, etc.), mas um objeto ideal, construído por via interpretativa: os direitos e deveres. Isso fez com que os estudantes de direito não tenham sido treinados como pesquisadores, capazes de produzir conhecimento sólido sobre fenômenos empíricos, mas como intérpretes de uma tradição, que se manifesta por meio de teses jurídicas: discursos nos quais um profissional defende retoricamente a existência (ou não) de certos direitos. Uma tradição tão longa e tão estável de educação sugere que, até hoje, as pessoas formadas por esse modelo, ainda centrado no trivium, continuam capazes de exercer adequadamente as funções de advocacia e magistratura.
Começamos com esse pequeno histórico das relações entre universidade e ciência para ressaltar que a dissociação existente entre ensino jurídico e pesquisa científica não é nova. Esse distanciamento faz parte da história das faculdades de direito em geral, não sendo um fenômeno especificamente brasileiro nem contemporâneo. Portanto, ninguém deve se surpreender que o discurso dominante dentro das faculdades seja aquele que é manejado pelos juristas em sua prática: a formulação de opiniões, de pareceres, que em nada se aproximam da mentalidade científica que é exigida para o exercício das atividades de pesquisa.
2: Para além do trivium: a necessidade de novas cartografias
Os cursos jurídicos têm como foco a formação de pessoas capacitadas para o exercício das profissões mais típicas do campo do direito (a magistratura e as várias espécies de advocacia), e que dediquem um tempo marginal para a formação de pesquisadores. O exercício dessas profissões tem como base a habilidade de produzir teses jurídicas, ou seja, posicionamentos devidamente justificados acerca dos direitos e deveres que as pessoas têm em determinadas situações. Como bem identificou Marcos Nobre, o exercício dessa habilidade se dá por meio da formulação de pareceres, ou seja, de opiniões fundamentadas e que têm por função convencer um determinado auditório acerca da correção de uma tese.
Ao longo de vários anos de formação profissional, os juristas aprendem a dominar um discurso dogmático que regula a produção social de tais pareceres. Aprendem a analisar os casos, a conhecer e interpretar as normas e os precedentes, a formular contratos, petições e sentenças que sejam percebidas pelos demais juristas como adequados. Um jurista competente é um técnico especializado na produção de pareceres adequados, sendo que o critério da adequação do parecer é retórico: um bom parecer é capaz de convencer o auditório a que se dirige, influenciando o comportamento dos outros atores envolvidos em um processo.
A academia jurídica é tradicionalmente um dos lugares em que o saber acerca da formulação de tais pareceres é reproduzido, o que leva a uma comunicação direta entre o prestígio acadêmico e o prestígio jurídico-profissional. O jurista que desempenha papel docente normalmente tem o seu prestígio profissional ampliado pelo reconhecimento de seu papel acadêmico. Os títulos acadêmicos normalmente são vistos como um elemento relevante de status profissional.
Um advogado que se apresenta como professor de uma universidade, ou como mestre em direito, tem o seu prestígio profissional reforçado. Em todos esses campos, o prestígio profissional é reforçado pelo desempenho de uma função acadêmica, que sugere uma capacidade profissional especialmente desenvolvida. Nesses campos, é natural que os profissionais se sintam estimulados a desempenhar uma função docente, que é vista como um signo de status. Essa peculiaridade faz com que seja bastante comum que profissionais reconhecidos no campo jurídico sejam também professores universitários e autores dos livros sobre o direito.
O mesmo não ocorre com um político que conclui um doutorado em ciência política, nem com um clérigo que se torna professor de sociologia da religião. Isso acontece porque, em campos mais ligados à ciência, o tipo de habilidade necessária ao exercício acadêmico é muito distante das capacidades ligadas ao exercício profissional. Um político de prestígio pode ter muitos votos e muita influência, mas não existe nenhuma expectativa de que ele seja versado em ciência política. Um sociólogo da religião da religião pode ter um grande prestígio científico, e nenhum prestígio religioso. O discurso acadêmico dos cientistas, nesses casos e em outros, não se confunde com os discursos que o pesquisador estuda.
Já no direito, o mesmo tipo de discurso é desenvolvido tradicionalmente tanto pelos juristas acadêmicos como pelos operadores do direito: ambos produzem pareceres sobre os direitos que as pessoas têm. A função tradicional da academia jurídica é a de oferecer formação profissional, e essa formação é proporcionada normalmente por especialistas no exercício desse discurso, e não de cientistas que estudam os comportamentos dos juristas. Já na ciência política e na sociologia, tal como na física e na biologia, os cursos de bacharelado são voltados a formar pesquisadores.
Todavia, esse é um cenário que tem se modificado rapidamente nos últimos anos. Em especial, existe uma tendência muito clara a que o prestígio jurídico de atores com grande projeção no campo profissional (promotores, advogados, ministros) não tenham nenhuma projeção acadêmica. Esse fenômeno parece estar bastante ligado ao fato de que, desde o final dos anos 1990, o sistema de pós-graduação em direito tem sido avaliado em função da produção científica, o que gerou uma pressão muito grande para que o perfil dos professores fosse gradualmente alterado, com valorização crescente das atividades de pesquisa.
A UnB da década de 1990 era um lugar de juristas experientes, que atuavam na prática judicial e eram também professores. Tratava-se de um ambiente de grande erudição, com professores bastante cultos, mas de um local em que praticamente inexistia pesquisa científica. Tanto na graduação quanto na pós-graduação, o objetivo era a realização de estudos (e não de pesquisa) e a capacitação para a produção de pareceres complexos. Exemplo dessa mentalidade foi o fato de que, em 1997, a minha disciplina de metodologia científica no mestrado em direito da UnB foi voltada apenas à produção de comentários a acórdãos. Hoje, a situação é bastante diversa, pois espera-se que todos os professores sejam capazes de produzir (e orientar) pesquisas, tanto no nível de graduação como em pós-graduação.
Essa mudança tem sido profunda nas universidades, pois os professores deixaram de ser tipicamente profissionais que ensinam sobre sua prática e reproduzem os conhecimentos do campo, e cada vez mais têm se tornado pesquisadores que ensinam sobre os seus objetos de pesquisa. O espaço para os docentes exclusivamente ligados à prática profissional está cada vez mais restrito aos núcleos de prática jurídica, e rapidamente se amplia a distância entre o prestígio acadêmico e o prestígio profissional.
Essa mudança não decorre apenas de uma alteração da estrutura universitária e do próprio sentido da pós-graduação. Ela decorre também de um certo esgotamento do saber jurídico tradicional, que ainda é o mais ensinado nas faculdades e cobrado nos concursos públicos. A função prática dos juristas sempre foi a de oferecer respostas aos dilemas que envolvem os direitos e deveres, e essa capacidade tradicionalmente esteve ligada à uma combinação de habilidades retórico-argumentativas e de conhecimento do campo, que nos últimos 200 anos tem sido primordialmente o domínio do conteúdo dos atos legislativos.
Embora as habilidades do trivium (retórica, gramática e dialética) permanecem altamente relevantes, as habilidades de memorização, que eram centrais para a atividade dos juristas até a década de 1990, perderam espaço considerável na vida dos juristas. Na década de 1980, uma parte muito relevante do conhecimento jurídico era saber de cor o conteúdo das leis, dos precedentes relevantes, dos artigos do código, pois a memória era o instrumento mais eficaz para encontrar referências que subsidiassem as nossas teses. Infelizmente, esse tipo de memorização perdura como sendo a principal habilidade ensinada nas faculdades e cobrada nos concursos públicos da área jurídica, como se estivéssemos 30 anos atrás.
Quando a atual constituição foi promulgada, não havia internet, não havia telefones celulares, não havia “pesquisas” no google, não havia a busca de legislação pelo planalto, não havia “pesquisa” informatizada de jurisprudência. Um smartphone com capacidade de pesquisar imediatamente todas as leis do país era um objeto tão fora do nosso horizonte que não aparecia nem na ficção científica. O conhecimento jurídico atual é baseado na nossa capacidade de utilizar essas ferramentas de informática para encontrar subsídios para formular as nossas teses. Não temos mais uma dificuldade grande de encontrar informações relevantes: nosso desafio está em processar essas informações de maneira adequada.
Tanto hoje como em 1988, ninguém é capaz de conhecer o texto de todas as leis do país ou de todas as decisões judiciais. Se hoje enfrentamos essa dificuldade com aprimorados mecanismos de busca (ou seja, com máquinas), naquela época tínhamos de enfrentar essa dificuldade com outros tipos de artefatos: tínhamos mapas que nos auxiliavam, e esses mapas eram construídos pela doutrina.
A função social da doutrina era justamente a de sistematizar o direito, tornando possível apreendê-lo em alguns anos de estudo. Não era preciso saber todas as leis porque os estudantes de direito podiam contar com o fato de que a leitura de um conjunto relativamente pequeno de textos (os manuais) seria capaz de oferecer um mapa de cada campo do direito, explicando não apenas os conceitos, mas também o conteúdo das normas. Ninguém nunca foi capaz de conhecer todas as normas, e por isso o conhecimento jurídico dependia de uma sistematização doutrinária do direito, que reduzisse o que se precisa saber a um certo número de livros que, se fossem lidos e memorizados, seriam garantia de um conhecimento suficiente para operar o direito
A academia jurídica era justamente o lugar onde esses mapas era elaborados, por docentes preocupados em oferecer para seus estudantes uma sistematização adequada do conhecimento jurídico. Esse primado da doutrina acabou já faz algum tempo, quando os sistemas de informática nos permitiram consultar diretamente as decisões. Em 1988, era muito difícil conhecer um precedente que não fosse descrito em um livro doutrinário, incluindo aí os repertórios de legislação comentada.
Por um lado, essa mudança representou um declínio da importância dos autores de manuais, que não gozam mais da centralidade que tinham na cultura jurídica nem na formulação dos discursos práticos, que cada vez mais utilizam referências diretas à jurisprudência, não mediadas pelos livros doutrinários.
Por outro lado, esse novo cenário criou novas necessidades e novos desafios para os juristas: a capacidade de lidar com a multiplicidade de precedentes, com a falta de sistematicidade dos posicionamentos dos tribunais e com a imprevisibilidade das decisões relativas a um caso concreto. Os juristas ainda precisam de mapas, mas eles precisam de novas cartografias.
A elaboração dessas novas cartografias exige justamente a produção de um conhecimento novo, que observe com cuidado o comportamento judicial efetivo, os padrões decisórios reais e as distâncias efetivas entre o que é dito e o que é feito pelos nossos juízes e tribunais. Essas novas cartografias exigem, portanto, habilidades de pesquisa empírica.
Não basta mais aos juristas lerem os livros de doutrina e escreverem suas opiniões com base nesses modelos, pois essa não é a forma efetiva de articulação dos saberes e das práticas do direito contemporâneo. Esses argumentos tradicionais ainda têm relevância, mas são guias relativamente limitados para a prática judicial e advocatícia nos dias de hoje.
Devemos reconhecer, inclusive, que as próprias habilidades retóricas têm um papel mais reduzido, na medida em que as decisões são cada vez mais padronizadas e, com isso, são cada vez menos influenciadas pela capacidade argumentativa dos advogados. Não temos um cenário no qual os tribunais julgam um número pequeno de causas de alto valor agregado, mas em um cenário no qual a ampliação do acesso à justiça fez com que a litigância se encontre espalhada por uma infinidade de casos de pequeno valor, que inundam os tribunais com problemas repetitivos, que vêm alterando as estratégias judiciais.
Nas últimas décadas, experimentamos várias estratégias voltadas a solucionar populações de processos com uma mesma decisão (em vez de decidir cada caso isoladamente), a selecionar as controvérsias que serão julgadas (e se transformarão em paradigmas, a tornar mais abstratas as questões enfrentadas (em vez de analisar as peculiaridades do caso concreto) e a gerar precedentes estáveis e vinculantes.
Todas essas mudanças exigem uma renovação nas capacidades dos juristas de analisar os padrões decisórios efetivos e as consequências que uma decisão tem para além das relações entre as partes. Nesses novos contextos, ganhou centralidade uma habilidade que não é a usual dos juristas tradicionais: a capacidade de fazer pesquisas empíricas, que observem os padrões efetivos das interações sociais ligadas ao direito. Para o enfrentamento dos desafios jurídicos atuais, não basta mais uma habilidade hermenêutica e interpretativa.
Precisamos de novos instrumentos analíticos, que permitam ao judiciário gerar sistemas estáveis, de decisões replicáveis e capazes de gerar consequências sociais adequadas. E os advogados precisam de conhecimentos que lhes permitam prever a atuação judicial e, com isso, interferir nos processos decisórios de maneira efetiva. Esse tipo de atuação, no judiciário e fora dele, exige um conhecimento mais preciso do direito, uma identificação mais clara das práticas judiciais e dos impactos sociais das decisões.
Em suma, a produção dos discursos jurídicos típicos (ou seja, dos pareceres) já não exige mais apenas as habilidades retóricas e hermenêuticas que marcaram a atuação jurídica do século XX, pois também exigem um conhecimento mais preciso dos fatos, que somente pode ser alcançado pela pesquisa. Com isso, alterou-se substancialmente o tipo de habilidade que precisa ser ensinada aos estudantes de direito, para que exerçam adequadamente as suas funções sociais.
3: Entre a socialização e a pesquisa: o direito visto de dentro e visto de fora
Como um jurista aprende a fazer um bom parecer? Existem aqui duas abordagens diferentes. A abordagem normal (que podemos chamar de interna) é socializando o jurista dentro do seu auditório, tornando-o uma pessoa que compartilha das formas de ver o mundo dominantes em uma determinada cultura jurídica, ao ponto que a sensibilidade pessoal do jurista esteja tão adaptada ao senso comum dos juristas que ele saberá fazer bons pareceres de forma intuitiva.
Essa é a estratégia típica da educação jurídica: uma estratégia de socialização no qual a inserção de uma pessoa no grupo social dos juristas permite que desenvolva uma sensibilidade convergente com a das pessoas que compõem esse grupo e, por isso, seja capaz de formular discursos adequados a persuadir as pessoas que compartilham o mesmo ambiente cultural. Tal abordagem não apresenta a cultura jurídica como um objeto específico a ser conhecido, mas como um modelo a ser seguido; não apresenta os comportamentos dos juristas como objetos a serem investigados, mas como concretizações mais ou menos imperfeitas dos padrões definidos pela dogmática.
Além da abordagem interna, é possível também uma abordagem externa: em vez de socializar a pessoa no grupo dos juristas é possível o desenvolvimento de uma observação cuidadosa do que os juristas dizem e do que eles fazem, construindo modelos descritivos e explicativos sobre os seus comportamentos. Nesse caso, a capacidade de formular discursos eficientes não decorre de uma sensibilidade convergente (que gera intuitivamente discursos aceitáveis para uma certa cultura), mas de um conhecimento crítico acerca dos objetos.
A utilização desses repertórios de conhecimentos para formular discursos dogmáticos competentes não se dá de forma imediata, mas de forma mediata: a reflexão sobre as interações em jogo pode conduzir à escolha de estratégias discursivas diversas. Esse é o tipo de abordagem que podemos caracterizar como científica: determinar um objeto, observá-lo cuidadosamente, adotar uma postura reflexiva sobre o modo como as nossas culturas condicionam nossas interpretações e construir modelos voltados a explicar os padrões que permitem uma compreensão do objeto escolhido. Esse conhecimento pode ser usado de muitas formas, inclusive para orientar a formulação de discursos dos agentes que participam das interações jurídicas.
Cabe ressaltar que a abordagem externa não é mais eficiente: muito pelo contrário. A abordagem interna possibilita soluções mais rápidas, que envolvem menos recursos e uma quantidade menor de informações. Um jurista profundamente identificado com a cultura jurídica em que atua poderá agir de forma intuitiva e tem grandes chances de ser reconhecido como sábio pela comunidade dos juristas, o que pode fazer com que as suas palavras sejam revestidas por um grau de autoridade que torna as pessoas mais propensas a ouvir e a acolher as suas teses. Um jurista reconhecido pode ganhar muito na função de parecerista, contratado a peso de ouro porque suas opiniões são dotadas de especial autoridade e podem eventualmente fazer com que os magistrados repensem suas posições.
Já a abordagem externa exige a formulação de trabalhos exaustivos de pesquisa. Sem um conhecimento muito desenvolvido, as conclusões dos cientistas serão guias frágeis para a ação, inclusive mais inseguros que a opinião de juristas experientes. Além disso, o tempo demandado para que os cientistas conheçam os seus objetos muitas vezes é tão grande que a resposta, ainda que segura, não pode atender aos imperativos da prática. Em março de 2020, os políticos precisam decidir sobre as medidas de enfrentamento da pandemia de coronavírus muito antes que os cientistas tenham desenvolvido um conhecimento seguro e detalhado sobre a doença. Nos quinze dias de prazo para escrever uma contestação, é muito difícil que seja possível formular e executar uma pesquisa científica em prazo hábil.
Uma vez que seja acumulado conhecimento científico suficientemente denso, é de se esperar que o resultado de sua utilização seja mais seguro do que a intuição dos profissionais experientes. Uma pesquisa médica cuidadosa sobre o coronavírus é mais valiosa do que as intuições de qualquer médico clínico. Porém, antes que essas pesquisas venham a esclarecer os resultados das diversas estratégias implementadas no mundo, a intuição dos clínicos e dos epidemiologistas será provavelmente o guia mais seguro de que dispomos. Esse fato sugere que o conhecimento científico (que é muito caro, muito demorado e exige uma acúmulo gigantesco antes que se torne útil) pode ser muito eficiente para tratar de contextos estáveis, que justifiquem anos de pesquisa para a sua compreensão e décadas de esforços para a construção de uma teoria consistente. Logo, não deve causar espanto que o conhecimento jurídico continue sendo ligado a um discurso interno, baseado nas crenças compartilhadas e pouco permeável a pesquisas empíricas.
Outro problema das abordagens científicas é que elas tipicamente a uma série de tensões porque elas fatalmente conduzem à percepção de que as narrativas internas não correspondem às práticas efetivas. Esse caráter iconoclasta da ciência não confere aos cientistas um reconhecimento social amplo, exceto em situações de crise. Como percebeu Richard Rorty, o pensamento reflexivo somente é sentido como socialmente relevante nos momentos em que tudo está desmoronando, e não confiamos mais na capacidade dos porta-vozes da opinião pública hegemônica (Rorty 2005). Em tempos mais estáveis, as previsões científicas sobre os riscos da mudança climática ou de possíveis pandemias são recebidos com certo ceticismo por uma opinião pública que acredita mais nas intuições dominantes que nas previsões (por vezes catastróficas) de especialistas que nos instam a mudar as estruturas sociais para nos adaptarmos aos riscos do futuro.
Assim como os pais tendem a reagir mal a quem critica com justiça seus filhos, os membros de uma sociedade tendem a reagir mal a quem critica as suas crenças arraigadas. Por mais que o modo como as culturas descrevem a si mesmas seja muito importante para a identidade do grupo, as narrativas tradicionais produzem discursos mitológicos comprometidos com a justificação e com a reprodução certas práticas culturais que podem ser muito danosas em contextos muito diferentes daquele em que essas crenças sociais foram desenvolvidas e se tornaram hegemônicas.
A descrição externa de certas práticas religiosas como repertórios de crenças compartilhadas não pode ser compatibilizada com a descrição interna de que certos livros são sagrados e portam uma verdade objetiva. A descrição externa de que as decisões judiciais reproduzem privilégios estratificados dificilmente pode ser compatibilizada com a ideia de que elas realizam um sistema objetivamente válido.
Todo discurso interno é baseado em um repertório de mitos que uma observação externa tende a tratar como ficções, mas que os próprios membros tratam normalmente como verdades. A comunidade dos juristas aceitou de bom grado a descrição de Kelsen de que o direito pode ser visto como um sistema de normas, mas tende a rejeitar de forma incisiva a afirmação kelseniana de que a validade do sistema é puramente ficcional.
Assim, vemos que exercício adequado do discurso interno do direito (ou seja, do discurso dogmático) conduz à produção de pareceres sentidos como sólidos pela comunidade dos juristas. O exercício adequado do discurso externo sobre o direito exige a produção de um conhecimento de base empírica, que é cada vez mais importante para que os juristas possam realizar suas escolhas estratégicas.
4: Discursos dogmáticos e discursos científicos
A academia jurídica tradicionalmente não é um lugar onde se desenvolveu pesquisa científica propriamente dita, pois o discurso que se convencionou chamar de ciência do direito tem um caráter dogmático, e não científico.
O conhecimento jurídico, entendido como o conhecimento a partir do qual os juristas podem formular opiniões técnicas adequadas, não é composto por modelos descritivo/explicativos, mas por modelos normativos/dogmáticos. Formar técnicos é muito diferente de formar pesquisadores, e a academia jurídica tradicionalmente está ligada à formação de juristas dogmáticos, sendo que a principal função dos cursos é justamente a de oferecer aos estudantes as habilidades necessárias para operar esse discurso.
Essa função didática tornou a academia jurídica um lugar de reprodução de conhecimentos, mais do que de produção científica. Tradicionalmente, existe uma atividade teórica, mas trata-se da produção de uma teoria dogmática, ou seja, de uma teoria normativa que busca orientar a prática do direito, oferecendo parâmetros de interpretação e aplicação do direito. Essa teoria normalmente não é produto de uma atividade coordenada de muitos cientistas, mas de esforços de sistematização realizados por pessoas com amplo conhecimento dos padrões dogmáticos vigentes. O que se chama de teoria são redes de classificações e de conceitos utilizados para distinguir as várias situações analisadas e suas possíveis resoluções, o que conduz a uma discussão focada na identificação das consequências normativas do direito vigente.
Essa é uma dogmática semelhante à dogmática da própria metodologia, que tampouco é uma disciplina científica, mas técnica. Na metodologia, discutimos quais são as melhores formas de planejar e executar uma pesquisa, os tipos de pesquisa, as relações do problema com o marco teórico, as dificuldades conceituais envolvidas na realização de uma pesquisa. São todas perguntas feitas dentro do marco de que é preciso oferecer orientações técnicas sobre a melhor forma de emitir opiniões jurídicas sólidas.
No caso das teorias dogmáticas, a noção de verdade desempenha um papel secundário, pois o caráter normativo das distinções não aponta para uma correspondência entre enunciados e o mundo (que é normalmente o padrão de veracidade), mas para o reconhecimento hegemônico de certas distinções dentro da cultura vigente.
A discussão sobre os efeitos da sentença, sobre as possibilidades de progressão de regime em certos casos, sobre o cabimento ou não de certos recursos, nada disso aponta para uma solução que dependa de uma análise empírica de fatos. Todas essas questões são hermenêuticas, são questões interpretativas que apontam para certas formas de compreensão do direito.
O debate acerca dos parâmetros corretos de interpretação e aplicação é o núcleo da dogmática, e boa parte da produção acadêmica do direito ocorre dentro desses marcos, em que o tipo de trabalho usual é um ensaio teórico que opera na chave do parecer: uma proposta técnica acerca da melhor forma de resolver determinados problemas interpretativos.
Esses pareceres são de relevância inegável para o direito, na medida em que eles possibilitam uma constante renovação dos discursos dogmáticos e dos quadros de categorias que orientam a prática do direito. A maior parte do debate acadêmico sobre o direito ocorre neste campo da dogmática, com perguntas acerca dos modos adequados de interpretar e aplicar o sistema jurídico. Não é por acaso que essa atividade é chamado de doutrina: trata-se de um campo dos sábios, em que pessoas com alto prestígio utilizam de sua autoridade para apresentar e defender suas opiniões, e nos quais uma opinião passa a integrar o repertório comum na medida em que ela é aceita de forma majoritária.
Portanto, não deve causar estranhamento o fato de que a maior parte dos trabalhos acadêmicos siga a estrutura do parecer: trata-se de uma tese, defendida a partir da justaposição de argumentos, que seguem normalmente uma estrutura canônica e que culminam em uma opinião justificada sobre algum tema dogmático. Esses não são trabalhos de pesquisa, pois não tem nenhuma interface com elementos empíricos a serem investigados, mas são trabalhos de estudo: estuda-se um tema como forma de subsidiar a sustentação argumentativa de uma tese que, de antemão, o autor presente defender.
Essa é uma forma de trabalho que pode ter espaço na pós-graduação, especialmente na pós-graduação lato sensu, que muitas vezes não tem uma interface muito direta com a pesquisa. Porém, nos últimos 15 anos, tem havido uma crítica intensa a esse modelo de produção acadêmica, que é repetidas vezes apontado como uma forma de produção não apenas pouco científica, mas também pouco relevante.
Na dogmática, o peso dos argumentos depende muito do prestígio de quem os enuncia. A dificuldade de produzir discursos dogmáticos nos trabalhos acadêmicos é que eles normalmente são elaborados por juristas novos, sem um prestígio que os destaque no meio jurídico, de tal modo que suas opiniões dificilmente ganham espaço dentro do próprio discurso dogmático. Essa falta de relevância dogmática dos estudos dogmáticos fez com que os trabalhos acadêmicos no direito fossem percebidos basicamente como um requisito para obtenção do título, uma exigência didática e não propriamente uma contribuição original para o conhecimento jurídico.
Essa é uma posição diferente do que ocorre em campos acadêmicos voltados à pesquisa, pois o potencial de impacto de uma pesquisa empírica depende menos da autoridade do autor do que do caráter inovador dos resultados alcançados. Nas pesquisas científicas, contam mais o caráter impessoal do método do que os atributos pessoais do pesquisador.
As características técnicas da formação dos juristas fazem com que, para eles, realizar pesquisas científicas seja normalmente um desafio. O fato de os juristas serem profissionalmente treinados a produzir pareceres e não pesquisas, faz com que nosso lugar de conforto esteja na elaboração das teses que defendemos na qualidade de especialistas. Conhecemos bem o nosso auditório, sabemos que tipos de argumentos são aceitáveis e nos sentimos confortáveis nesse jogo retórico que comporta muitas verdades.
Essa peculiaridade do discurso jurídico faz com que boa parte da produção acadêmica seja composta por pareceres (em que se defende uma tese) e não por pesquisas (em que se investiga uma questão).
Tanto os pareceres quanto as pesquisas partem de intuições, mas enquanto os pareceres se voltam a justificar uma opinião, as pesquisas são voltadas a colocar opiniões à prova, o que resulta em abordagens opostas. Na pesquisa, a opinião é sempre provisória, e toda metodologia de investigação precisa envolver a possibilidade de que o trabalho venha a comprovar que a intuição inicial era falsa. Já nos pareceres, o objetivo não é testar uma hipótese, mas conquistar retoricamente a adesão do auditório, o que faz com que a intuição do parecerista seja defendida e não testada.
No caso dos advogados, a necessidade de defender uma das partes faz com que o seu discurso se volte a fundamentar as pretensões da pessoa representada. No caso dos juízes, mesmo que não exista comprometimento a priori com um dos lados, o que se exige deles não é uma investigação, mas uma opinião: a sentença é um parecer dotado de autoridade, mas a lógica de sua redação é a mesma das petições iniciais, qual seja, defender uma posição determinada.
O discurso dogmático tem esse formato de opiniões contrapostas (de advogados e consultores) e de opiniões dotadas de autoridade (dos juízes), nos quais a questão fundamental é encontrar justificativas sólidas para as opiniões defendidas por cada ator. Isso faz com que o discurso jurídico use argumentos de forma bastante seletiva: somente há para os argumentos que favorecem a posição defendida.
Os bons juristas são conscientes dos pontos fracos dos seus argumentos, mas essas fraquezas nunca são evidenciadas, visto que elas colocam em risco o potencial retórico dos pareceres. Já o discurso acadêmico tem uma abordagem muito diversa: como é preciso testar as próprias opiniões, é preciso uma abordagem explícita de suas forças e de suas fraquezas, para avaliar se a hipótese discutida no trabalho tem mais potencial do que as hipóteses alternativas. O bom pesquisador não pode ocultar as fraquezas e os limites de sua tese, mas precisa de esclarecê-las.
O pesquisador precisa ser muito consciente do que ele não sabe, dos limites de suas respostas, de que nosso conhecimento sobre o mundo é insuficiente para responder boa parte das questões. Ele precisa saber que sua resposta adota pressupostos, precisa esclarecer esses pressupostos para o leitor, para que seu texto não seja uma armadilha retórica. De fato, o texto até pode ser uma peça de retórica (qual não é?), mas a retórica acadêmica envolve um grau de esclarecimento que a retórica dogmática não tem.
A retórica dogmática dos juristas parte do pressuposto de que o direito oferece soluções jurídicas para todos os casos relevantes. Basta interpretar as normas com cuidado, que podemos chegar aos resultados corretos. E não podemos simplesmente dizer: não sabemos. O jurista precisa resolver problemas, independentemente dos limites de seu próprio conhecimento. O cientista não precisa. De fato, ele precisa saber diferenciar os problemas que ele sabe resolver daqueles que ele não sabe.
De sua parte, o jurista nunca pode responder: não sei. Já o cientista precisa reconhecer sua ignorância sobre certos pontos, pois é daí que vem o ímpeto da pesquisa: descobrir o que não sabemos.
Essas diferenças de perspectiva faz com que seja muito difícil para os juristas de profissão fazerem pesquisa. A tendência dos juristas é partir de uma opinião intuitiva e buscar elementos que a corroborem, o que conduz a escrever um parecer voltado a comprovar a própria tese. O parecer nunca atenta contra a tese defendida pelo jurista e, na academia, os estudantes muitas vezes ingressam em um curso de pós-graduação com a ideia de defender uma tese e não de investigar uma tese.
Ocorre, porém, que a atividade acadêmica e científica sempre parte de uma dúvida: por isso, todo problema de pesquisa pode ser descrito como uma pergunta. Não se trata de comprovar uma tese, mas de avaliar uma pergunta em aberto. A pesquisa tem de estar aberta tanto para a comprovação da hipótese (ou seja, da resposta provisória que manifesta a intuição do pesquisador), quanto para a sua negação. Inclusive, a pesquisa pode nem ter uma hipótese, de fato. Ela pode partir da dúvida para esclarecer um ponto, sem que o trabalho constitua o teste de uma hipótese.
Já os juristas precisam resolver problemas, oferecendo respostas seguras. O discurso jurídico precisa oferecer decisões, mesmo em casos controversos, mesmo em situações obscuras, e precisa fazer isso de forma célere. O pesquisador pode estimar que precisa de dez anos para responder a uma pergunta.
Os prazos do direito são sempre muito mais curtos do que o necessário para realizar uma pesquisa exaustiva. Os juristas precisam oferecer respostas definidas e rápidas, tão seguras quanto possível, para todos os conflitos que envolvem direitos. Já os cientistas precisam diferenciar claramente o que sabem e o que não sabem, possibilitando respostas muito seguras pra uma quantidade restrita de situações. Essa diferença de ritmos faz com que o conhecimento acadêmico tenha um grau de certeza mais alto que as soluções dogmáticas, mas que as soluções dogmáticas seja mais adaptadas ao tempo de resposta socialmente necessário para as decisões jurídicas.
Além disso, o foco do conhecimento dogmático é fugidio. Por um lado, os discursos são voltados especificamente ao processo em que se atua. Por outro, a linguagem da dogmática sempre fala de uma interpretação correta em abstrato. Já o conhecimento empírico tende a adotar como unidade de análise uma população. Não se pode analisar empiricamente o sentido correto das normas nem a aplicação adequada do direito a um caso: o que se pode analisar são os padrões observáveis em populações de objetos: processos, decisões, pessoas que propõem demandas ou são demandadas.
Essa busca por padrões fáticos e não por interpretações corretas faz com que o conhecimento científico tenha objetos muito diferentes dos saberes dogmáticos. Que tipos de argumentos são mais aceitos em matérias tributárias? Quais são as tendências de julgamento de um determinado julgador? Quais são os casos cuja execução é mais rápida? Todas essas são perguntas sobre fatos, e nessa medida não têm uma resposta na dogmática.
Porém, a distinção mais relevante é que o conhecimento dogmático tem um caráter normativo, no sentido de que ele estabelece padrões de aplicação do direito que deveriam ser seguidos. Já o conhecimento científico tem um caráter explicativo, no sentido de que busca compreender fatos e padrões de comportamento.
Não podemos perder de vista que a dogmática é a linguagem própria da atividade jurídica e que as interações comportamentais dos agentes do sistema de justiça (advogados, juízes, promotores, etc.) são mediadas por uma abordagem dogmática. Porém, devemos também reconhecer que abordagens científicas podem ser úteis para os juristas, na medida em que argumentos de fato por vezes são capazes de suplantar argumentos de dever.
5: Entre modelos explicativos e modelos normativos: a dimensão prática das pesquisas empíricas
Na maior parte das disciplinas científicas, a produção acadêmica envolve pesquisas empíricas que são publicadas na forma de artigos em periódicos especializados. Essas pesquisas, como veremos adiante, podem adotar abordagens qualitativas (em que são interpretadas descrições feitas em termos de atributos qualitativos) ou quantitativas (nas quais a interpretação incide sobre descrições baseadas em quantificações).
No campo do direito, para além dos pareceres dogmáticos, predominam análises qualitativas sobre objetos documentais, especialmente sobre decisões judiciais, na busca de compreender padrões argumentativos (focados nas argumentações) ou identificar padrões fáticos (focados nos comportamentos). Porém, são cada vez mais utilizadas abordagens quantitativas, nas quais
Em toda área, existem também ensaios teóricos, nos quais o pesquisador busca avaliar em que medida as categorias teóricas existentes são capazes de lidar adequadamente com os resultados empíricos das pesquisas. Se as observações empíricas acerca do universo estão em choque com os modelos conceituais hegemônicos, é preciso ajustar os modelos para que exista uma correspondência adequada entre teoria e empiria.
No campo do direito, não é bem isso o que acontece porque a teoria jurídica não constitui um modelo explicativo do mundo empírico, e sim um modelo normativo voltado a orientar o exercício de uma atividade prática. Melhor dizendo: é possível desenvolver modelos explicativos sobre os fenômenos jurídicos, mas o desenvolvimento de tais modelos não é o papel típico dos juristas. O discurso típico dos juristas é dogmático, e não científico: trata-se de dimensionar as consequências normativas de certas situações e não de avaliar as causas e consequências fáticas de tais situações.
Para que possa atribuir consequências normativas a certos fatos, o jurista precisa partir da ideia de que (i) existe uma ordem jurídica que atribui consequências normativas válidas aos fatos jurídicos e que (ii) os juristas são capazes de identificar essas consequências por meio de uma forma de reflexão analítica. Os juristas são treinados para confiar em sua capacidade de determinar consequências válidas para os fatos que lhes cabe analisar. No âmbito dos sistemas jurídicos modernos, não lhes é dado reconhecer que (i) o sistema é impreciso e que, por isso, (ii) não é possível extrair soluções seguras para muitas situações.
O problema central do direito é a decisão, e essa exigência tem impactos profundos sobre a prática jurídica e sobre a teoria que orienta essa prática. As decisões sempre operam sobre situações concretas, e é por isso que as perguntas tipicamente respondidas pela prática jurídica são acerca das consequências normativas de certos fatos. Nesse contexto, o problema da interpretação(no sentido de conhecer o sentido das normas) somente aflora como parte de uma estratégia decisória: a decisão implica a adoção de certos significados, e o interesse na interpretação de textos é sempre ligado ao modo como essas interpretações podem condicionar processos decisórios.
A dogmática jurídica envolve um discurso teórico, mas trata-se de um conhecer para decidir. Não escolhemos os conceitos jurídicos conflitantes em virtude de sua correspondência com os fatos, mas em virtude das estruturas decisórias que eles condicionam (ou seja, das consequências normativas implícitas nos modelos teóricos utilizados). Portanto, a escolha entre modelos jurídicos conflitantes (como o naturalismo e o positivismo, por exemplo) tem uma dimensão fundamentalmente política: adotamos os modelos teóricos cujas consequências práticas consideramos mais legítimas. Com isso, a escolha do modelo jurídico (ou seja, do repertório de conceitos utilizado pelos juristas) decorre de uma análise de sua legitimidade (correspondência entre práticas certos valores) e não de sua veracidade (correspondência entre enunciados e fatos empíricos).
De fato, esse primado da legitimidade sobre a verdade ocorreria se o direito fosse uma questão de escolha individual, como é atualmente o caso da religião. Uma pessoa adota ou não certo discurso religioso a partir de suas convicções pessoais, de seus valores, e não de um critério objetivo de comprovação empírica. Uma tal liberdade pode ocorrer no campo da academia, na qual um pesquisador pode adotar os marcos teóricos de sua preferência pessoal.
Porém, para na prática jurídica, especialmente dos advogados, essa questão política vem combinada com um problema estratégico: não existe grande liberdade para utilizar publicamente os modelos jurídicos que se considera mais legítimos porque a atividade jurídica envolve a interação entre vários atores. Com isso, por maior que seja a liberdade de escolha dos modelos que a pessoa utilizará para compreender o direito, a escolha dos repertórios de conceitos utilizados na composição das peças processuais é sempre movida por imperativos de estratégia retórica: os juristas precisam elaborar discursos públicos com base em argumentos capazes de promover uma persuasão retórica.
É justamente esse o ponto em que o caráter dogmático do discurso jurídico passa a ter uma conexão muito direta com os elementos empíricos: o potencial retórico de um argumento é uma questão de fato, não é uma questão de direito. Um bom advogado, portanto, precisa saber manejar o discurso dogmático, mas precisa operar uma série de escolhas retóricas que envolvem um conhecimento profundo sobre os fatos.
Enquanto a dogmática indica como os tribunais deveriam decidir, somente pesquisas empíricas são capazes de identificar como os tribunais efetivamente decidem. Em certos momentos históricos, pode ser que a argumentação dogmática constitua, de fato, o expediente retórico mais eficaz para os advogados. Quando isso acontece, ganham força as teorias legalistas da atividade judicial, baseados na suposição de que os magistrados decidem a partir dos critérios definidos pela dogmática jurídica prevalecente.
Existem outros momentos, porém, em que os magistrados utilizam o discurso dogmático apenas como mecanismo para conferir uma forma jurídica para decisões fundamentalmente políticas. Nesses casos, a aplicação de teorias legalistas tem pouca capacidade explicativa, sendo mais razoável descrever as decisões jurídicas em termos de ideologia política ou de estratégias individuais.
Há vários indícios de que vivemos em um momento desse segundo tipo, no qual muitas vezes os argumentos dogmáticos são apenas uma cortina de fumaça. Nesses contextos, existe uma possibilidade grande de que advogados com formação legalista tenham baixos índices de eficiência, pois a utilização de argumentos dogmáticos pode não ser suficiente para promover a persuasão dos magistrados.
Mas pode ser que essa própria percepção seja enganosa. Os juízes podem ser individualmente ideológicos, mas talvez a sua atuação colegiada possa garantir que as teorias legalistas continuem sendo os modelos mais eficientes de explicação. Talvez os juízes sejam individualmente engajados na tentativa de garantir a segurança jurídica por meio de decisões compatíveis com a dogmática vigente. Talvez os argumentos dogmáticos sejam mais capazes de gerar prestígio para os magistrados. Talvez a combinação das preferências de vários juízes termine conduzindo os tribunais a interpretações que podem ser interpretadas adequadamente como uma tentativa de aplicar um direito impessoal.
De fato, não sabemos com muita precisão como funcional as cortes, qual é o impacto real dos argumentos e quais são as consequências de nossas escolhas institucionais. Não sabemos precisar quais serão os resultados das modificações que são propostas, a cada momento, para reformar os sistemas de justiça. O fato de que o desenvolvimento de pesquisas sobre a área jurídica está em um nível muito inicial faz com que não tenhamos clareza sobre os possíveis impactos dessas pesquisas, nem sobre se chegaremos a um ponto no qual elas serão capazes de oferecer diretrizes melhores que as intuições de juristas bem formados no discurso dogmático.
Essas respostas somente poderão ser dadas quando avançarmos, e muito, uma série de agendas de pesquisa. Precisamos desenvolver categorias analíticas adequadas, precisamos adaptar as metodologias disponíveis para que sejam capazes de gerar conclusões relevantes para o campo jurídico, com seus ritmos próprio, sua cultura particular e seus regimes de autoridade. Estamos longe da capacidade de produzir conhecimento jurídico de alto impacto na prática judicial, mas, quando esse ponto chegar, não tenho dúvidas que a atividade prática dos juristas será profundamente alterada. Embora esse horizonte de mudança não esteja no curto prazo, é bem possível que essas pesquisas ganhem densidade e impacto ao longo da próxima década, de tal forma que os conhecimentos desenvolvidos hoje podem modificar substancialmente o panorama jurídico da próxima geração de juristas.
Referências
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Imai, Kosuke. 2017. Princeton University Press Quantitative Social Science: An Introduction.
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Stahl, William H. 1992. Martianus Capella and the Seven Liberal Arts. Vol. 2: The marriage of Philology and Mercury. New York: Columbia University Press.