O objetivo deste curso é desenvolver competências ligadas ao exercício da pesquisa.

No campo do direito, é comum que os cursos de metodologia sejam lecionados como cursos de epistemologia, ou seja, de filosofia da ciência. Esse tipo de abordagem conduz ao desenvolvimento de um discurso filosófico acerca da pesquisa, que trata das características das atividades científicas e aborda a estrutura, os limites e as possibilidades do discurso científico.

É bem verdade que um debate epistemológico é importante para estudantes que provém de uma graduação em direito que raramente trata dessa ordem de questões. Porém, existem casos nos quais a adoção desse enfoque decorre do fato de as disciplinas de metodologia serem ministradas por docentes ligados à teoria e à filosofia, mas que têm pouca vivência no exercício da pesquisa empírica.

O presente curso não tem um enfoque epistemológico, mas metodológico: trata-se de desenvolver habilidades relacionadas à pesquisa empírica, o que deixa um espaço restrito para o debate acerca das várias teorias sobre a ciência. Para quem deseja aprofundar os conhecimentos de epistemologia, sugerimos a leitura de um excelente livro de Paulo Abrantes chamado Método e Ciência: uma abordagem filosófica (Abrantes, 2013).

Neste curso, embora seja imprescindível tratar de algumas questões filosóficas, o objetivo principal é capacitar os estudantes a formular um projeto de pesquisa que seja ao mesmo tempo coeso e factível. Toda pesquisa envolve um trabalho extenso, por isso, a etapa de planejamento é essencial. Nenhum advogado faz um projeto de petição, para depois ser executado, porque as petições tendem a ser trabalhos relativamente curtos e que seguem uma estrutura predeterminada: descrição dos fatos, qualificação jurídica dos fatos descritos e pedido. Escrevemos um esboço inicial, que é revisto e aprimorado, até chegar a um resultado consistente.

Essa dinâmica de estabelecer minutas e submetê-las a ciclos de revisão, é adaptada ao trabalho prático de advogados e juízes, que escrevem textos na estrutura de um parecer: defesa retórica de uma tese, que manifesta a opinião do parecerista. Essa mesma abordagem também é adaptada a trabalhos acadêmicos em que seguem a estrutura de um ensaio, que normalmente é desenvolvido de modo intuitivo e circular: o autor estuda bastante e, a partir do estudo, chega a algumas conclusões que são apresentadas e justificadas.

Tal abordagem intuitiva tem a vantagem de exigir pouco esforço de planejamento e tem a desvantagem de tornar os resultados muito dependentes da experiência do pesquisador, visto que a sua sensibilidade será o principal guia para selecionar os casos relevantes, para identificar os argumentos centrais e para construir a justificativa retórica das conclusões.

No caso das pesquisas empíricas, essa abordagem intuitiva é pouco indicada porque os ciclos de revisão da pesquisa são demasiadamente custosos. Um magistrado pode entender que o texto que está escrevendo para uma sentença não defendeu suas conclusões de modo suficientemente claro nem convincente, e isso faz com que ele tenha de rever o texto. Rever o texto é uma atividade complexa, mas que podemos fazer várias vezes, até chegar a um bom resultado.

No caso das pesquisas empíricas, podemos enfrentar o mesmo dilema sobre a clareza dos argumentos, e isso também faz com que os pesquisadores passem pelos mesmos ciclos de revisão de sua escrita. Ocorre, porém, que a pesquisa empírica lida com a produção de conjuntos de dados, que são feitos a partir de procedimentos específicos de coleta, de tratamento, de classificação, de organização. Nesse caso, se um pesquisador segue intuitivamente a sua sensibilidade e descobre ao fim que não levantou dados suficientes, ele não pode simplesmente rever o trabalho: ele precisa reiniciar a pesquisa.

Se a amostra for insuficiente e se as classificações forem inadequadas, não se trata de remodelar os argumentos, mas de recompor as bases de dados. Se um doutorando passou meses realizando entrevistas e depois entendeu que teria sido crucial fazer uma determinada pergunta aos entrevistados, ele muitas vezes não terá como refazer essas entrevistas. Se um mestrando desenhou mal um experimento sobre a eficácia de um medicamento, o resultado pode ser inconclusivo, e o pesquisador provavelmente não terá tempo nem dinheiro para refazê-lo.

Em suma: nas pesquisas que envolvem a observação e a coleta de dados, a correção de deficiências na coleta e no tratamento das informações tendem a exigir custos e tempo que não são disponíveis ao pesquisador empírico. A estratégia ensaística de fazer um esboço e desenvolvê-los em ciclos de revisão só funciona quando não há uma etapa longa e custosa de experimentação empírica ou de levantamento de dados.

Fazer uma pesquisa empírica de modo intuitivo é como começar a construir uma casa de modo intuitivo, a partir de um esboço geral. Quanto mais complexo for o seu desafio (talvez você não queira construir uma casa, mas um submarino ou um computador), a ausência de um planejamento minucioso e exigente é receita certa para o fracasso.

Isso faz com que o planejamento da pesquisa empírica seja um elemento crucial para o êxito do trabalho: diversamente do que ocorre nos pareceres e ensaios (que são as formas de escrita típicas dos juristas), as pesquisas exigem uma etapa de projeto que permite a identificação e a superação de deficiências antes de o pesquisador "ir a campo" para levantar os dados.

Essa necessidade crucial de planejamento não diminui o lugar da criatividade e da intuição, que são elementos fundamentais para a formulação de hipóteses explicativas. Porém, a pesquisa empírica se realiza por meio de observações minuciosas, que em vez de operar uma intuição bem cultivada, precisam desafiar explicitamente as nossas convicções. Isso ocorre porque a ciência parte de intuições, mas tem a necessidade de submetê-las a testes rigorosos, para elas serem consideradas plausíveis.

A pesquisa científica prospera através um delicado equilíbrio entre intuições afiadas (que são necessárias para formular hipóteses criativas) e uma grande desconfiança acerca das próprias convicções (desconfiança que é necessária para que nossas hipóteses sejam verdadeiramente colocadas a teste). O parecerista tende a defender as opiniões às quais chegou intuitivamente, o que o leva a construir estruturas retóricas de justificação. Enquanto o cientistas estabelecer testes rigorosos para as suas intuições, o ensaísta busca defender as interpretações e explicações que ele próprio formula.

Na academia jurídica, essa abordagem ensaística leva ao risco de que uma confiança demasiada na intuição faça com que a pesquisa se limite a confirmar as hipóteses de trabalho. Todavia, confiar pouco na intuição também gera problemas, pois tende a conduzir o pesquisador a realizar trabalhos burocráticos, de pouca originalidade. É fácil afirmar que devemos ter um equilíbrio aristotélico entre confiar demais e confiar de menos. Mas ocorre que essa "confiança desconfiada" é tão paradoxal que não podemos esperar que ela seja realizada adequadamente por uma pessoa.

Os seres humanos tendem a exigir provas muito sólidas para demonstrar teses que desafiam as nossas crenças, mas se contentam  com indícios frágeis, quando eles confirmam nossas convicções, como podemos observar claramente nas sentenças do então juiz Sergio Moro ou dos famosos powerpoints de Deltan Dalagnol. Tanto o senso comum como as pesquisas de psicologia comportamental nos indicam que somos maus juízes sobre nossas próprias crenças, mas somos avaliadores rigorosos com relação às teses defendidas pelas outras pessoas.

Essa assimetria faz com que várias instituições sociais (como a ciência e o judiciário) adotem processos coletivos de avaliação. No judiciário, a decisão monocrática de um juiz normalmente pode ser reavaliada por um coletivo de magistrados. Na academia, todo trabalho é submetido a uma avaliação externa, em que um coletivo de examinadores analisa a solidez das metodologias e dos resultados.

Essa dinâmica faz com que os acadêmicos, assim como os magistrados, estejam sempre submetidos a um alto grau de exposição. Um pesquisador tem de estar aberto sempre a submeter-se ao escrutínio de outros, bem como a participar da avaliação do trabalho de seus pares, o que exige o desenvolvimento de critérios rigorosos de produção e também de um olhar sensível para os desafios que cada um de nós enfrenta.

Na prática do direito, não há interpretações objetivamente corretas, mas a necessidade prática de tomar decisões definitivas faz com que sejam criados sistemas de autoridade: a sentença judicial não decorre de um conhecimento especial dos juízes, mas tão-somente da autoridade em que estão investidos. O que distingue um juiz não é o seu conhecimento nem é o seu prestígio, mas é o seu poder.

Na ciência, não há lugar para a autoridade. Há lugar para o prestígio, para o reconhecimento público das contribuições que foram e são feitas por diversos atores, que se tornam influentes em alguns campos e que representam modelos a serem seguidos. Mas o prestígio não significa poder, pois os trabalhos dos cientistas mais célebres podem ser contestados mesmo por pesquisadores iniciantes: a força da crítica está nas evidências e nos argumentos.

Para que essa dinâmica ocorra, é preciso ter razoável segurança de que as críticas serão construtivas, e o primeiro passo nesse sentido é que as pessoas que compõem um grupo se reconheçam e se percebam como companheiros em um desafio comum, nos quais existe abertura para ouvir e disposição para apoiar uns aos outros nos riscos assumidos.

A formação do pesquisador nunca é um processo isolado: precisamos do olhar do outro, com um teste para nossas intuições; e precisamos olhar uns para os outros, para formularmos conjuntamente parâmetros rigorosos de avaliação das nossas próprias ideias. Assim, a formação dos pesquisadores sempre envolve a preparação para essa interação com o escrutínio da comunidade, em uma defesa pública que tem por objetivo avaliar tanto a proficiência do pesquisador quanto a  solidez do trabalho.

O forte viés de confirmação que cada pessoa tem acerca de suas convicções faz com que, por mais imenso que seja o esforço individual envolvido em um trabalho,  nossas pesquisas somente atingem resultados excelentes quando realizadas no contexto de um grupo coeso, que nos ofereça tanto uma base segura para nos arriscarmos em intuições ousadas quanto que nos desafie a submeter nossas intuições a testes rigorosos.

Nas disciplinas acadêmicas, é preciso construir um espaço de acolhimento e segurança que permita aos estudantes, especialmente aos mais tímidos, que possam fazer perguntas e sugestões de forma livre, o que contribui para o desenvolvimento de uma intuição sensível. Um ambiente intimidador e competitivo estimula todos os participantes a evitar posições em que se sintam expostos. Se as pessoas não se sentem estimuladas a demonstrar as suas dúvidas e inquietações ou para arriscar interpretações originais, o processo de aprendizagem fica muito prejudicado.

Essa situação faz com que as disciplinas de metodologia tenham um objetivo dúplice: precisamos desenvolver algumas habilidades no plano individual, mas também precisamos fomentar laços, para que a turma possa se transformar em um grupo capaz de contribuir efetivamente para que os vários trabalhos possam ser desenvolvidos com excelência.

Não há excelência sem diálogo, sem tolerância, sem abertura, sem cumplicidade. Por isso, ao final da disciplina, esperamos que vocês tenham bons projetos no nível individual, mas também que vocês terão conseguido formar uma comunidade epistêmica, um grupo que servirá de apoio para que esses projetos possam ser revistos e aperfeiçoados, ao longo do seu processo de execução.

Precisamos, então, investir tempo na criação de um ambiente em que as pessoas se sintam acolhidas e seguras. O primeiro passo para isso é deixar claro que todos nós partilhamos todos os mesmos receios e inseguranças. A academia exige que cada um de nós esteja sempre superando seus limites, o que gera uma forte síndrome do impostor: todos temos receio de não estarmos à altura dos desafios que precisamos enfrentar, todos temos receio de que alguém desmascare a nossa fraqueza.

Essa é uma dificuldade inerente ao fato de que, no campo acadêmico, pois não importa qual é a sua experiência e a sua capacidade: cada um de nós se propõe a enfrentar desafios que estão sempre além das nossas forças e que, por isso, não convém que sejam enfrentados sozinhos. Vocês têm os seus colegas, que os ajudarão a perceber as potencialidades e os limites de suas intuições mais inspiradas, e vocês terão também os orientadores, cuja função é justamente auxiliar vocês com a experiência acumulada por quem já trilhou outras vezes esse caminho.

A sensação de insegurança costuma nos acompanhar desde o início do processo, pois quase todos duvidamos da solidez dos projetos de pesquisa apresentados nos processos seletivos. Os melhores projetos são aqueles feitos dentro de um grupo de pesquisa, com a análise e colaboração de outros pesquisadores. Porém, raros são os candidatos em qualquer processo seletivo que tiveram a oportunidade de debater coletivamente seus projetos e de obter auxílio de pesquisadores experientes, capazes de auxiliar na definição do problema, no aprimoramento dos métodos, na definição clara dos marcos teóricos. Por isso, é muito comum que os mestrandos (e mesmo doutorandos) tenham dúvidas acerca dos projetos com os quais ingressaram nos respectivos programas de pós-graduação.

Cada um vive a própria insegurança e muitos imaginam que as outras pessoas são mais seguras, mais conhecedoras, mais capazes. Mas o fato é que as pós-graduações e os mestrados são os cursos nos quais a maioria das pessoas desenvolve as habilidades de pesquisa autônoma. Algumas têm experiências de pesquisa na graduação, mas o que se espera nesse nível é apenas a iniciação à pesquisa, focada na formação dos estudantes e não na produção científica propriamente dita. 

É somente na pós-graduação (especialmente nos programas stricto sensu) que as exigências teórico-metodológicas passam a ser compatíveis com contribuições efetivas ao campo, que são escritas para serem publicadas. Essa escrita para a publicação envolve níveis de exposição aos quais muitos não estão acostumados. Mas ocorre que esse tipo de exposição é inevitável na academia, visto que a estrutura do conhecimento acadêmico envolve a publicidade dos dados e a revisão dos pares.

A ciência é feita por meio da formulação de explicações inovadoras, compostas por hipóteses geradas de forma intuitiva e que, na maioria das vezes, terminam por se mostrar incompletas (quando não são totalmente equivocadas).

Partimos de intuições, e a ciência é um grande projeto de testagem e aperfeiçoamento dessas intuições, movidas pela crítica externa e por exigências argumentativas muito grandes. O rigor específico do conhecimento científico decorre justamente dessa abertura constante à crítica, desse reconhecimento de que nunca teremos explicações acabadas.

Erramos muito mais do que acertamos, e por isso só conseguimos produzir algo de interessante quando nos sentimos seguros o suficiente para arriscar. Um ambiente inseguro desestimula a dinâmica que é própria da academia:  propor explicações que são expostas publicamente, criticadas de forma aberta e que normalmente se mostram limitadas e precisam ser constantemente revistas.

Um curso de metodologia é justamente um treinamento voltado a capacitar os estudantes a participar dessa dinâmica de formular trabalhos robustos e apresentá-los ao escrutínio público. Esse é um treino que começa na sala de aula, para que cada pessoa se exercite em formular hipóteses e discuti-las publicamente, apresentando e recebendo críticas. Depois, é preciso formular um projeto de pesquisa sólido e factível, que é o objetivo típico dos cursos de metodologia. Mas devemos reconhecer que esse é somente o início de um ciclo de formação, que somente se completa quando os pesquisadores apresentam publicamente os resultados de seus trabalhos.